Nós, do mundo “civilizado”, temos o costume de marcar datas específicas para lembrar o que no cotidiano esquecemos. Entre tantas, há o 19 de abril. Dia do Índio. Enquanto isso, os índios marcam tempos. Tempo de flechar peixe, tempo de rastejar anta, tempo de plantar milho e tempos de festas, por exemplo.

Em 1970 este escriba resolveu mudar sua vida e mergulhar no mundo indígena. Época difícil para esses povos. Regime militar. O órgão do governo responsável pela garantia dos direitos dos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai), era comandada exclusivamente por militares. Generais e coronéis davam as ordens. E a ordem era integrar os índios à comunidade nacional o mais rápido possível.

Os índios teriam que participar da engrenagem econômica do país. Os que não tinham ainda feito contato conosco deveriam ser rapidamente “atraídos” – esse era o termo usado. Enquanto sem contato, não existiam para o Estado brasileiro.

Nesse cenário, não concordando com as diretrizes, fui trabalhar com os povos indígenas. No Maranhão e depois no Acre.

Até alguns cientistas sociais e antropólogos renomados achavam que os índios seriam incorporados pela sociedade nacional. Deixariam de ser índios. Com o tempo e com ajuda da mesma academia, percebemos que os índios continuariam índios. E nos unimos a eles em lutas fantásticas contra o propósito do regime militar, que queria porque queria que “os parentes” deixassem de ser o que eram.

Como não dava para demitir os índios, junto com aproximadamente 80 profissionais, entre antropólogos, indigenistas e afins, em 1980, fui demito da Funai. Voltei em 1982. Permaneci até 2010. E continuo na mesma caminhada.

Do processo de massacre e genocídio que os povos indígenas sofreram desde que Cabral meteu as botas nas praias da Bahia não vou tratar. A história – pouco divulgada, porém existente e documentada – é bem conhecida. Como esta escrita é em primeira pessoa, falo do que vi e vivi ao lado dos povos indígenas nestes quase 47 anos.

Veio a tão esperada democracia e a Constituição de 1988. E nela está asseverado que o Brasil é um país pluriétnico e que os índios têm o direito de permanecer índios em suas terras, em resumo. Foi um avanço considerável. E os povos indígenas embarcaram numa jornada de conquistas de terras, direitos e de afirmação cultural.

Entardeci com um sentimento de que, apesar dos pesares, havia um futuro brilhante para os índios no Brasil.

Mas acordo espantado desse sonho e me deparo com uma situação política totalmente contrária aos povos indígenas e minorias do meu país. Há um movimento contínuo de desmonte da política indigenista brasileira, um congresso com bancadas explicitamente contra os direitos dos povos indígenas, um Executivo rasgando a Constituição e um Judiciário – com raras e honrosas exceções – legislando, pasmem, sobre o assunto.

A grande mídia, outrora parceira dos índios, só se lembra deles no dia 19 de abril. O governo sempre solta um pacotinho de bondade nessa data, regularizando umas terras indígenas longe dos interesses do agronegócio e dos mineradores e engaveta (ou remete à Funai o processo em fase de regularização para ser refeito) a regularização de terras como as dos Guarani do Mato Grosso do Sul. – Felizmente,  o governo do Estado do Acre é uma exceção a essa nova regra. É parceiro dos povos indígenas que aqui habitam. Felizmente.

E, para completar, temos um presidente da Funai que declara que os índios têm que ser parte do processo produtivo, entre outras barbaridades. Produtivo pra quem?

Um ministro da Justiça que diz que terra não enche barriga de índio!

Estou de volta a 1970.

Índios da geração pós-1988: uni-vos. Cara fechada, dentes serrados e determinação quase suicida como seus avós. Há uma guerra dura, desproporcional e longa a ser travada. Sempre e de novo.

Não há nenhum motivo para comemorações.

José Carlos Meirelles é sertanista

O indigenista José Meirelles (Foto: arquivo pessoal)