Earthmovers – Os construtores de geoglifos

A produtiva via de mão dupla implantada entre os pré-hispânicos do Acre e os povos dos Andes nos tempos dos geoglifos  

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Vaso-Careta encontrado pelo livreiro Arthur Jerosh em Plácido de Castro, perto da Bolívia, numa das regiões que podem ter sido uma das portas de ida e vinda na relação entre os povos andinos com a região do Acre no período que antecedeu a chegada dos europeus. (Foto Gleilson Miranda / Secom)

A história parece ficar mais clara: quando o coronel Plácido de Castro decidiu comprar o Seringal Capatará não estava simplesmente arranjando meio de sobrevivência no pós-guerra, mas reconstruindo um caminho que, não fosse encerrado a bala, iria levá-lo facilmente à riqueza. Tão logo tomou posse da terra, chegou ao cargo de administrador da região e mandou consolidar o varadouro Capatará e fechar o varadouro das Missões, que se constituía na mais importante artéria de abastecimento de gado da Bolívia para Rio Branco, que na época se chamava Volta da Empreza.

Nos dias de guerra, o coronel Plácido ordenou acabar com as pontes dos varadouros que traziam gado do Beni boliviano, o que depois lhe gerou problemas até ser executado. Nos tempos de paz, a estratégia do militar era manter o controle da situação, desta feita conferindo a si o domínio sobre o comércio na região. Plácido veio para este rincão da Amazônia em busca dos campos – e um, o Puciari, em especial chamava sua atenção e era algo quase lendário.

Mais tarde, saberiam que a escolha do Capatará tinha muito a ver com seus objetivos iniciais na Amazônia. O fato é que o beribéri assolava os seringais do Acre por causa da comida importada, deficiente de vitamina B1. Praticamente nada se produzia nas colocações senão a borracha – a não ser por força de uma ou outra mulher que, às costas do patrão, criava o xerimbabo e cultivava alguma fruta ou verdura. A carne tinha de vir de fora, muitas vezes enlatada, da Inglaterra, ou charqueada, do Rio Grande do Sul. A ingestão sistemática desses produtos, vez por outra em estado não muito sadio, ocasionou baixas em série.

Com o prejuízo da mão-de-obra, os seringais, que teimavam em não produzir alimento e se mantinham hermeticamente fechados à caça (um desperdício de tempo de trabalho), decidiram ser abastecidos com a “carne verde” da Bolívia trazida através dos antigos caminhos implantados pelas, digamos assim, frentes de colonização pré-colombianas, povos que ajudaram a estabelecer grandes civilizações de tendência de fixação à terra e evoluídas em várias áreas.

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O professor Peterson Freire mostra antigas peças cerâmicas que seriam contas de um colar ou adorno que pudesse pertencer a um graduado membro do povo que viveu na região de Sena Madureira. Ao lado, a urna funerária encontrada por Peterson em Sena: corpos eram sepultados na posição parecida com a que se encontram os bebês prontos para vir à luz. ( Foto Gleilson Miranda / Secom)

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Havia um “caminho de tropas” desde o seringal Capatará com conexão direta aos campos do Beni, na Bolívia. Em 1907, o coronel Fawcett fez o reconhecimento desse caminho com sua expedição em companhia de Plácido de Castro, até Santa Rosa, Bolívia, nas margens do Rio Abunã.

O gado do norte boliviano chegava aos varadouros acreanos pelos rios que banham o Beni.  Depois, em terra firme, os bois começavam uma caminhada de dias até Campo Esperança, onde invernavam e recuperavam o peso esmaecido nas dezenas de quilômetros percorridos mata adentro. Só após a reengorda os animais iam para os mercados do Capatará, Rio Branco ou Xapuri. Calcula-se, portanto, que os deslocamentos por terra eram intensos, com troca e comércio entre os povos da montanha e da selva (ao menos um colonizador, Labre, disse ter escutado sobre presença de lhamas entre as criações dos índios desta região). 

Há uma tradição segundo a qual as terras de campina eram chamadas de Campos da Natureza pelos índios, os quais acabaram dizimados pelo enfrentamento desproporcional aos brancos recém-chegados, guerras entre os cacicados ou doenças como a varíola. Segundo esta tradição oral os  campos foram implantados pelos Katiana, entre 2 mil e 5 mil anos antes do presente, e consolidados como vegetação pela própria natureza. Nas nascentes do Iquiri, por exemplo, as manchas dessa vegetação formam círculos de mais de 1,5 mil metros de diâmetro, sugerindo que foram enormes aldeias. Em sua versão, Fawcett faz referência aos Apurinã como pioneiros nos campos.

Os campos ocorrem na mesma rota dos geoglifos, os sítios arqueológicos em estrutura de terra presentes no Vale do Acre, sul do Amazonas e oeste de Rondônia. Os mais antigos sítios arqueológicos, localizados em Xapuri, foram construídos há cerca de 3 mil anos, segundo as datações de laboratório, e prevalecem em boa parte na mesma região dos campos. Os mais novos, construídos entre 800 e 1.500 anos antes do presente, são encontrados na região de Sena Madureira, onde não há campo.

De outro lado, a Teoria dos Refúgios afirma que a formação dos Campos da Natureza tem a ver com manchas remanescentes da savanização amazônica ocorrida no Pleistoceno, que foi o ultimo período glacial registrado no nosso planeta.

Um aquecimento elevou o nível dos oceanos depois da era glacial e causou mais chuvas e a “retropicalização” da região onde se situa o Brasil até alcançar seu máximo no ótimo climático, por volta de seis mil anos atrás. 

A persistência de grandes manchas de florestas tropicais úmidas durante os períodos secos do Terciário e do Quaternário é, provavelmente, a origem de muitas espécies e subespécies de plantas e animais existentes hoje. Essa seria outra possibilidade para a formação dos campos – remanescência, então, da Idade do Gelo.

Tempos depois, os índios que formavam grandes e complexas civilizações longe das várzeas promoviam a domesticação de várias plantas, especialmente a mandioca, possivelmente, segundo Teresa Losada Valle, pesquisadora do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), “um dos mais importantes legados indígenas para o mundo moderno”.

Os índios então se apresentam como especialistas na movimentação de terra – earthmovers, na denominação em inglês -, e também criam um grande laboratório de domesticação de plantas na região que compreende os Andes, provavelmente nesta parte da Amazônia brasileira também. O mapa do cientista russo Nicolai Vavlov ajuda a confirmar isso. “É possível que a mandioca, amendoim e mesmo a goiaba tenham sido domesticadas nesta região”, disse o pesquisador Evandro Ferreira, do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre (Ufac).

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As enormes estruturas de terra demandariam muita mão-de-obra e ferramentas próprias para sua construção, indicando que grandes civilizações se desenvolveram na Amazônia e aprimoraram. Longe das várzeas, sistemas de manejo do solo e das águas. Esses povos apresentavam elevado nível de organização e disciplina, e forte tendência de fixar-se à terra, capazes inclusive de se adaptar a variações ecológicas. (Foto Gleilson Miranda / Secom)

A região do Estado do Acre, segundo se pode avaliar, compreende as terras brasileiras mais próximas do Império Inca, o Tawantinsuyu. “Os rios Acre, Iaco, Purus, Chandless, Juruá, Breu e outros são compartilhados, em parte de seus percursos, pelo Brasil e Peru. Não há razões para duvidar que estes rios tenham sido utilizados pelos incas”, relata Alceu Ranzi, o primeiro a denominar de geoglifos as antigas estruturas de terra do Acre.

Resta pouca dúvida quanto a uma intensa relação dos povos andinos, incluindo os incas, com esta região. “Existem já diversos indícios e documentos que apontam para a presença inca bem próxima da fronteira do Acre com a Bolívia (como a fortaleza inca encontrada na região de Riberalta, que indica uma rota permanente para essa região), além de referências às expedições do inca Pachacuti que entraram muito profundamente no Antisuyo (região de florestas a leste do Império Inca) para estabelecer a dominação econômica e cultural característica dos incas. Assim é bem possível afirmarmos que os povos que habitaram as terras acreanas se encontravam sim sob a influência do Império Inca faltando ainda definir melhor a amplitude e as características dessa influência”, disse Marcos Vinicius das Neves, historiador e um dos pioneiros no estudo dos geoglifos.

Na verdade, o solo acabará respondendo a muitas das questões até agora propostas. Já se tem, por exemplo, indícios que se fortalecem de que os geoglifos foram construídos há mais tempo do que se tem informação. Nas proximidades de alguns sítios arqueológicos, Ondemar Dias encontrou manchas de terra preta e, trinta anos depois, Lúcio Flávio Zancanella localizou terra mulata.  A terra preta é um solo que apresenta elevada fertilidade, propício ao cultivo de espécies tanto de ciclos curtos quanto de ciclos perenes.

De acordo com diferentes estudos ela pode ser encontrada desde a cordilheira do Andes até a ilha de Marajó e foi utilizada e reutilizada pelos índios por centenas de anos sem perder muito de sua fertilidade. Alguns pesquisadores acham que o  grande número de trabalhadores necessário para a formação das enormes estruturas de terra que são os geoglifos e a presença de terra preta e mulata (cujas manchas se formaram a partir da deposição de rejeitos de alimentos e outros produtos) apontam para assentamentos densamente povoados. Teriam sido  milhares os que viviam nestas terras altas.

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O desenho feito por D. Brinkmeier citado no artigo “Time and complexity in historical ecology”, de Clarck Erickson, traz a recordação da semelhança entre as antigas estruturas de terra do Acre e as da Amazônia boliviana, especialmente Llano de Mojos: os povos pré-colombianos amazônicos detinham avançadas técnicas de domesticação de plantas e animais.

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Os estudos levaram Nicolai Vavilov a concluir que o mundo contou oito centros de domesticação e difusão de plantas que estão na base alimentar do homem. O mapa de Vavilov sugere que esta região da Amazônia foi um desses centros. Testes de DNA realizados pelo Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) confirmaram que a macaxeira foi domesticada e difundida há doze mil anos a partir da região que compreende Acre, Rondônia, Mato Grosso e Bolívia.

As terras distantes dos principais rios e das várzeas serviram também de rotas de povoamento e de implantação de extensos assentamentos. Cidades com intensa atividade agrícola, pessoas interferindo no ambiente ao seu redor, na floresta ou savana, trabalhando de modo cientificamente perfeito na movimentação dos solos e das águas, mantendo sistemas defensivos e práticas religiosas. Se o ambiente era de hostilidade por questões ideológicas ou mesmo ambientais, a guerra de cacicados e a política de jugo de um povo sobre outro propõem que os geoglifos de forma circular eram preferencialmente fortalezas paliçadas prontas para rechaçar inimigos. “Como exemplo, os povos andinos detinham conhecimento do uso da alavanca”, disse Roberto Féres, perito da Polícia Federal do Acre, reforçando que os índios tinham o domínio de técnicas avançadas de construção e movimentação de terra. Féres é autor, junto com Alceu Ranzi, de artigo sobre ferramenta de localização de sítios arqueológicos.

Ondemar Dias estabeleceu as fases ceramistas localizadas no Acre, das quais algumas já se tem noção estão ligadas aos geoglifos e representam atividades domésticas. “Sem dúvida muitos sítios da Tradição Quinari (alto rio Purus e seus afluentes, o Iaco e o Acre, ou Iquiri) se associam a tais estruturas (mas também a sítios sem as mesmas). Também constatamos que é possível que povos de outras tradições tenham construído sítios do mesmo tipo”, disse Dias em entrevista publicada em 2007.

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O geoglifo Bimbarra, localizado próximo do centro de Capixaba, onde há grande presença das estruturas circulares. O formato pode indicar que a finalidade da obra era para defesa. (Foto Gleilson Miranda / Secom)

A partir da cosmologia de um grupo aruak, os Manchinery, Cristina Virtanen apresenta ligações possíveis com as transformações da terra, entra elas moradia (proteção), jogos e brincadeiras. Fartamente encontradas na região de prevalência dos geoglifos, as palmeiras foram largamente manejadas pelos pré-hispânicos nesta região como fonte de alimento e matéria-prima para habitação. “Provavelmente cultivavam e caçavam, fazendo também trocas com outras regiões. Utilizavam os produtos das palmeiras”, disse Denise Schaan, do Museu Emílio Goeldi.

Há evidências atestando a relação de troca e comércio entre povos das terras baixas com os que viviam nos Andes. Citando Korpisaari, Cristina Virtanen diz em artigo publicado no livro Arqueologia da Amazônia Ocidental: Os geoglifos do Acre que “nos produtos materiais da cultura Tiwanaku, cultura pré-colombiana dos Andes, existem várias representações de evidências de contatos que hoje são encontrados como traços culturais nos objetos arqueológicos localizados nos Andes”. E conclui: “A influência dos povos antigos da selva amazônica e dos Andes correu para ambas as direções”.

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