Redescobrindo J.G. de Araújo Jorge

Nascido em Tarauacá e lido no Brasil inteiro, poeta é reencontrado pela literatura acreana

jg_e_os_quatro_irmaos.jpgNuma época em que velhos artistas e pensadores acreanos são lembrados,  é possível que estivesse  faltando  a memória de   J.G.  de  Araújo Jorge, falecido em 27 de dezembro de 1987 depois de uma trajetória de sucesso na  literatura  e na política.

J.G. nasceu em 20 de maio de 1914, em Tarauacá. De acordo com sua biografia publicada no site  www.jgaraujo.com.br, é descendente, pelo lado paterno de tradicional família alagoana, os Araujo Jorge, e pelo lado materno dos Tinocos, dos Caldas e dos Gonçalves,  de Campos, Macaé, e São  Fidélis,  no Rio de Janeiro.

Com vários livros publicados, o acreano ficou conhecido no Brasil inteiro.   Passou sua infância em  Rio Branco, onde fez o curso primário no Grupo Escolar  7 de Setembro. No Rio, realizou o curso secundário nos Colégios Anglo-Americano e Pedro II. Fundou e presidiu a Academia de Letras do Internato Pedro II, no velho casarão de São Cristovão.   Formou-se  pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Foi também locutor e redator de programas radiofônicos, atuando nas rádios Nacional, Cruzeiro do Sul, Tupi e Eldorado. Em 1965, era professor de História e Literatura, do Colégio  Pedro II.

Elegeu-se deputado federal em 1970 pela Guanabara, reelegendo-se já para o seu terceiro mandato em 1978.   Ocupou a vice-liderança do MDB e a presidência da Comissão de Comunicação na Câmara dos Deputados. Ainda  de acordo com sua biografia oficial,   participou sempre das lutas anti-fascistas, como democrata e socialista. Lutou, ainda estudante, contra o "Estado Novo". Foi preso e perseguido várias vezes durante esse período.

J.G. Ficaria mais conhecido como o "poeta  do povo e da mocidade", pela sua mensagem social e política. Na noite do último dia 17 de novembro, no Palácio Rio Branco, a obra de J.G. foi lembrada pelo presidente da Academia Acreana de Letras, instituição que completou 70 anos de fundação naquela data. O poema escolhido por Clodomir Monteiro foi "Essa aritimética". À cada estrofe, o público presente era convidado a repetir a frase:

 

Antes, eu era apenas metade

de um Ser, a pervagar sem rumo certo,

à procura ideal dessa unidade

que é como um novo mundo descoberto.

 

Enquanto sós, que somos? Um deserto

a nos pesar com sua imensidade,

existir só começa, a céu aberto,

quando dois são um só – eis a verdade!

 

Eu vinha por aí, aos solavancos,

como se diz: aos trancos e barrancos,

um pedaço a rolar, uma metade

 

de um Ser, mas quis a sorte, nos achamos,

e ao nos somarmos, nos multiplicamos

nessa aritmética da felicidade.

 

Amor à terra natal

J.G. será um dos homenageados na próxima edição da revista da AAL, com previsão para ser publicada em breve. Júlia Gomes, mantenedora do site oficial e organizadora da árvore genealógica dos Araújo Jorge, informa que não existem parentes do poeta morando no Acre.

J. G., no entanto, dedicou peças à terra natal, como o poema "Onde estás rio Acre?", em que fala de sua infância na capital acreana: "Rio Branco, meu princípio sem fim, que não sei onde estás, mas sei que estás de onde vim", é a conclusão do poema que revela como eram bons aqueles tempos, quando a vida passava devagar e, para as crianças, era só diversão no rio Acre, nos igarapés, na floresta…".

Para Clodomir Monteiro, J.G. foi um sonetista que emocionou gerações. "Ele empolgou duas ou três gerações e não foi só um literato poético mas um militante político", disse, ressaltando sua importância no contexto intelectual do Acre e do Brasil.

 

Onde estás rio Acre?

Porquê rio Acre

se suas águas são doces como "alfinim"

no mapa de minha infância?

Onde estás Rio Branco, mal crescida

de vermelhos barracos

que a distância azulou?

Sinfonia da infância:

rumor de chuva no telhado de zinco,

tão bom para dormir!

– rumor de chuva na floresta, besourada distante,

rumor das águas escachoando nas ruas,

caindo das calhas nas barricas cheias,

(que banho gostoso!)

– sinfonia da infância!

Música da banda passando na rua: do grande trombone

rebrilhante, caramujo de cobre

gorda espiral soprando rolos de "dobrados"

que eu ouvia embevecido e curioso, trepado no gradil

do coreto da praça.

Sinfonia da infância:

– o apito das "chatas" na curva da cadeia, rompendo a madorra

dos dias parados, iguais;

o tchá-tchá dos remos das catraias

chapinhando na água do rio, ritmados dentro da noite,

indo e vindo, Penápolis-Empresa, – Empresa, do outro lado

as luzes tremendo em fieiras nas águas do rio, –

(ó meus barcos de sonho, em rios de sombra

que ainda hoje correm sem margens, no tempo).

 

Onde estás

rio Acre, de Rio Branco,

rio vermelho que o tempo azulou,

que corres para a distância

e que foges de mim?

Rio Acre da minha infância

que sempre vais

de onde vim…

 

Onde estas Rio Branco, dos bois rodando nos varais

das moendas do engenho, gementes,

(Meu Deus! a tristeza castrada do olhar dos bois!)

dos bois arrastando madeiras pra serraria,

dos cajueiros carregados

das mangueiras noivando

dos cacaureiros da floresta,

e daquele alto cajazeiro que pintava o chão das madrugadas

com salpicos de ouro

depois do vento da noite.

 

Rio Branco

dos santinhos passados na aula,

das representações de fim-de-ano no Grupo Escolar,

das pulseirinhas de chifre – feito cobras de olhinhos

[ de pedras falsas –

que Eudóxia ganhava de presente.

 

Onde estas Rio Branco, de peito nu,

de pés no chão,

da molecada remexendo os sacos de açúcar rindo à-toa

com as bocas escancaradas no Mercado,

pulando sobre os montes de serragem na Serraria;

das subidas nas altas mangueiras, mirantes

de inesquecíveis paisagens.

 

Onde estás Rio Branco

da igrejinha branca à beira do barranco

com a corda de seu sino no ar – balanço tantas vezes

de minhas travessuras, – transformadas

em surpreendentes badaladas.

 

Rio Branco

do "velho" na sala, jogando gamão com o juiz,

do ordenança Manuel, sempre sentado, no alpendre,

do "pega pinto", refresco nos dias de calor,

Rio Branco das primeiras peladas

nos terrenos da igreja;

das primeiras lições de história natural que os bichos ensinavam

nos quintais, nos currais, nas ruas, nos terrenos baldios

na cara de toda gente.

 

Rio Branco

que para mim ficou, principalmente

neste meu ar de aventura

neste jeito de insubmissão

neste espírito de rebeldia,

nesse amor pela terra, pelas coisas simples, pelos seres humildes,

nesse ácido gosto de liberdade que põe água na boca

como cajá-mirim,

e é impulso, alegria, ânsia incontida e festa.

 

Neste gosto de liberdade

que até hoje me companha,

como se ainda fosse o garoto de peito nu e pés no chão

que fugia de casa manhã cedo e se perdia em travessuras

no engenho, na floresta, nos igarapés

sem medo da surra que o esperava.

 

Rio Branco

meu princípio

sem fim,

que não sei onde estás, mas sei que estás

de onde vim.

(O Poder da Flor   – 1969)

 

Edmilson Ferreira
Agência de Notícias do Acre