São João do Guarani: o Santo da Floresta

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Eu não sabia ainda como chegar à casa do Raimundão – Raimundo de Barros, seringueiro e liderança bem conhecida na Reserva Extrativista Chico Mendes (Resex), primo do sindicalista assassinado -, com quem, por telefone, havia combinado passar a noite em sua casa.

[aspas fala=”Eu me atrepo na árvore, ato a rede lá em cima e fico bem caladinho, no escuro total” autor=”Raimundão”]

Após atravessarmos a balsa, paramos o carro para pedir informações a uma idosa na varanda. Ela indicou o caminho e seguimos viagem.

O intuito da minha ida era cobrir os festejos de São João do Guarani, tradicional manifestação religiosa realizada há mais de 100 anos, comemorada sempre no mesmo dia de São João (24 de junho), na colocação Guarani, 42 quilômetros depois da cidade reserva adentro. Nesse dia, os fiéis pedem graça e pagam promessas ao chamado Santo da Floresta.

Para chegar à casa do seringueiro, eu sabia que andaríamos ainda cerca de 40 minutos em estrada de terra, mas acabamos aumentando o percurso, porque não entendi muito bem o caminho que a senhora informara e entramos num ramal errado. Após acharmos o rumo certo, chegamos, enfim.

Fui recebido pela Maria, mulher do Raimundão, que me disse que ele estava “na rua” – como falam quando alguém está na cidade.

Deixei a bagagem na varanda e foi nessa hora que pude finalmente parar um pouco e perceber o silêncio que fazia na floresta, coisa rara para quem mora na capital.

Depois disso, percebi que o silêncio era cortado por alguns sons, não de carros ou qualquer outro característico da cidade, mas de algumas araras que pousaram na árvore no quintal bem em frente à casa.

Em seguida, outro barulho bem alto, que não conseguia distinguir, mas que Rhian, filho do seringueiro, disse que era de tucanos. Nesse momento, o rapaz foi até o limoeiro ao lado da casa, pegou uma folha e reproduziu exatamente o mesmo som, que foi respondido dentro da mata.

Numa motoca chega Raimundão, homem moreno, comprido e com barbas já brancas. Aparentava pressa, mas parou na varanda e “caducou” com o neto de seis meses. Ele me cumprimenta, enquanto tira a camisa, enche um copo inteiro de café, prepara a espingarda e materiais para caça. “Raimundo, avô e caçador…”. Lembrei-me da música “Avohai”, de Zé Ramalho.

Antes de ele partir, conversamos por alguns minutos. De fato, um líder bem esclarecido, com uma conversa aprumada, um sábio da natureza e inteirado da política nacional, mesmo morando em um lugar que não tem internet nem sinal de celular.

Já passava das 17 horas quando ele se levantou: “Vou caçar uma paca pro rancho aqui de casa. Mas, se der sorte, trago um veado”. E explicou o “modus operandi”: “Eu me atrepo na árvore, ato a rede lá em cima e fico bem caladinho, no escuro total”. Raimundão completa 72 anos neste mês de julho.

À noite, dona Maria me chama para jantar. Na cozinha, revela o cardápio: porquinho de casa e paca guisada. Eu não gosto de carne guisada, cozida, não como salada, feijão… A paca era uma carne escura e não aparentava muito bonita. Admito que servi para não “fazer desfeita” e provei muito apreensivo. Mas que delícia! Uma carne muito saborosa, que dona Maria soube temperar com maestria.

Depois da janta, Rhian precisou fazer uma ligação. Eu o acompanhei até o telefone via satélite localizado a 200 metros da casa. Até aquele momento ainda não havia olhado o céu. Nossa! Sabe aquela expressão “céu cravejado de estrelas”? É a expressão correta para aquela noite. Dava para distinguir a olho nu o rastro da Via Láctea.

Quando comentei com Rhian, ele não deu muita importância: “Tem dia que tá mais bonito”! Foi a noite mais bonita que vi na vida, mas o menino testemunha essa cena todo dia. A foto? Não fiz, pois não havia levado o tripé – necessário para esse tipo de registro.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row full_width=”stretch_row” full_height=”yes” parallax=”content-moving” parallax_image=”285012″][vc_column][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column el_class=”card” css=”.vc_custom_1499123556220{margin-top: -100px !important;background-color: #ffffff !important;}”][vc_column_text]

A fé e os milagres

No dia seguinte, levantei antes das 6, para que pudesse seguir viagem até a colocação do Guarani.

Da casa onde estava até o lugar são mais de 20 quilômetros, em estrada de chão. Peguei carona em uma moto Pop 100. Nos primeiros minutos, pensei que arrancaria, de tanto medo, o ferrinho no qual o passageiro se apoia.

No ramal cheio de curvas e pedrinhas, o piloto andava a quase 80 km/h. Mas logo me acalmei e pude ver quão bonito era aquele caminho no meio da floresta, com o sol passando pelas árvores.

Não demorou para achar a primeira família que ia a pé. Seu Raimundo da Silva Castro levava a família para conhecer o festejo. Com um filho cadeirante, disse que hoje, como tem ramal, todos vão de moto ou de carro. Mas que ele ia, 20 anos atrás, pela mata. “Era um dia para ir e outro para voltar.”

Ainda no ramal, encontrei dona Antônia Feitosa, que havia saído de casa às 3h30 da madrugada. A peregrinação fazia parte da promessa que fizera para o santo: se sua neta, que nascera prematura e com problemas cardíacos, sobrevivesse, ela faria o caminho a pé. Eram 7h50, e a mulher, com uma amiga, ainda andaria cerca de uma hora.

[aspas fala=”Então me apeguei com São João ‘do Guarani’ e prometi que, se ele me desse aquela graça, enquanto vida eu tivesse e pudesse viria todos os anos trazer minha oferta, soltar fogos e rezar” autor=”dona Diogenia”]

Quando cheguei à colocação, ainda havia pouca gente. Alguns conversavam do lado de fora da igreja, outros rezavam e acendiam velas ao pé do Cruzeiro ou faziam suas ofertas numa pequena capela.

Além do túmulo que recebe o corpo de João do Guarani, ao lado da capela existem duas imagens, uma de cada lado, com interpretações diferentes do santo – uma mostra um homem com cabelos longos e barba e aos seus pés um pequeno animal. Já na outra estátua, um seringueiro, apoiado na seringueira segurando uma cabrita (faca para cortar seringa) e uma tigela.

Parte das promessas é paga com fogos de artifício, que são ouvidos com muita frequência no lugar. Uma dessas pessoas era dona Diogenia, que estava acompanhada da neta. Ela vai há 31 anos seguidos e conta os milagres alcançados: “O primeiro foi por conta de um emprego que uma comadre minha estava para me arrumar na cidade, e eu queria criar meu filho com estudo. Então me apeguei com São João [do Guarani] e prometi que, se ele me desse aquela graça, enquanto vida eu tivesse e pudesse viria todos os anos trazer minha oferta, soltar fogos e rezar. Consegui o emprego e já me aposentei. Hoje meu filho está na segunda faculdade”.

Emocionado, Valtemir França diz que viera pagar uma promessa que devia havia dois anos. “Tava com a perna inchadona, problema de coração, pressão alta, dor a cabeça… Agora tô bem. Já devia há dois anos, e dessa vez deu de vir e pagar uma prendazinha. Ele é milagroso, se se apegar com ele você é valido”, assegura.

A tradição é passada por gerações. Elesgleide Ferreira conta que vai desde criança para o festejo e agora apresenta a divindade ao filho. “Eu sou muito devoto do santo. Minha mãe já fez várias promessas comigo e nós fomos cumprindo. E agora tô apresentando pra ele ter a oportunidade de conhecer o santo e crescer olhando pra ele”, explica, orgulhoso.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row full_width=”stretch_row” full_height=”yes” parallax=”content-moving” parallax_image=”285028″][vc_column][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column el_class=”card” css=”.vc_custom_1499123578731{margin-top: -100px !important;background-color: #ffffff !important;}”][vc_column_text]

O santo e os devotos se parecem

Às 10 horas começou a missa. A igrejinha, ainda sem paredes e com poucos bancos, estava cheia. Alguns improvisam mais bancos com tijolos e tábuas de madeira, mas outros tantos ficam em pé mesmo.

A palavra do padre Francisco das Chagas, que também já foi seringueiro, é sobre João Batista, mas também fala de “João”, referindo-se ao santo da floresta.

Diz que ele foi um homem vivo como nós, que morou ali, era como um deles e que ele deve ser tomado como exemplo, pois achou graça diante de Deus.

A explicação da origem de quem foi João do Guarani parece não ser consenso. A história mais conhecida conta que ele foi um seringueiro que morreu à mingua em casa, sem receber ajuda de ninguém. Talvez por isso as pessoas da região se identifiquem muito mais com ele, porque, antes de ser o “Santo da Floresta”, acreditam que foi alguém como eles e que sabe os problemas que eles passam.

Procurando confirmar essa tese, Sônia Gomes Sampaio desenvolve uma pesquisa para seu pós-doutorado sobre o fenômeno de almas milagrosas no Acre e a necessidade de a população das áreas mais afastadas ter santos da sua região. A pesquisadora relata que o Acre é o estado da Região Norte onde esses eventos mais ocorrem.

O festejo é importante para a comunidade não só pela fé, mas também pelo lazer que esse dia oferece. Depois da missa, a igreja continua cheia, pois é chegada a hora do bingo. Um morador da região doou duas novilhas para serem sorteadas. Esse é um momento de alegria entre os fiéis e quem ajuda nessa animação também é o narrador, que sabe todas as expressões do jogo, como “dois patinhos na lagoa”, indicando o número 22, ou ainda “um pra cima e outro pra baixo, de qualquer jeito”, referindo-se ao 69.

Antes mesmo de terminar o bingo, alguns já se preparam para o campeonato de futebol, que acontece no campinho ali próximo. Para poder ter alguma foto do jogo, liberei a carona que havia conseguido para voltar à casa de Raimundão, onde o motorista me buscaria.

Ao sair da festa, precisei ficar na beira da estrada por quase 40 minutos, num sol escaldante, até conseguir vaga no carro de uma família que me levou, mas pertinho da casa do Raimundão o pneu furou. Fomos andando juntos até a casa do líder seringueiro, que destacou seu filho mais velho para ajudar a família e consertar o pneu.

Foi apenas um dia e meio de viagem, mas, repito, vi a noite mais bonita da minha vida, experimentei carne de paca e aprendi mais das tradições do nosso Acre. Uma experiência incrível![/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row full_width=”stretch_row” full_height=”yes” parallax=”content-moving” parallax_image=”285032″][vc_column][/vc_column][/vc_row][vc_row full_width=”stretch_row_content”][vc_column][vc_custom_heading text=”Galeria de Fotos”][vc_column_text]

[/vc_column_text][vc_text_separator title=”Texto e fotos de Alexandre Noronha || Diagramação de Adaildo Neto “][/vc_column][/vc_row]

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